8 de mai. de 2010

Eu sei que a gente se acostuma...



Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.



A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o do que necessita.
E a lutar para ganhar dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.


A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma."

 
(Clarice Lispector)


3 comentários:

Gi disse...

Que lindo Lilian! Posso colocar no meu blog?
Beijos

Gi disse...

Valeu Lilian! Já copiei lá! E realmente todas as músicas da Marisa são belíssimas e cheias de interpretação...
Bjs

Unknown disse...

muito bom Lilian!
Clarice lispector escreve bem, comprei um livro dela para uma amiga uns 3 anos atrás, agora sobre o tema do texto, a gente já se acostumou tanto que não conseguimos achar uma maneira de mudar isso...capitalismo selvagem. rsrs
bjus!